Em maio de 2024, o Rio Grande do Sul enfrentou uma enchente histórica. No interior, rios varreram construções e estradas às suas margens em cidades pequenas, e muitas pontes desabaram, criando caos e desafios logísticos na circulação intermunicipal. No começo achei que as pontes principais seriam reparadas logo e que as das rotas menos críticas continuariam danificadas por mais tempo, por isso não valeria a pena mudar o mapa, preferimos mapear informações mais permanentes. Mas logo o evento tomou proporções sem precedentes. O lago Guaíba superou o récorde de 1941, submergindo centenas de ruas na região metropolitana e gerando centenas de milhares de desalojados. Nesse período, retomei o trabalho remoto, cuidei de um familiar doente, ajudei um parente a sair do caos da Cidade Baixa quando foi anunciado que iria inundar, ficamos sem água em casa por uma semana (ainda bem que pude recorrer à doação de água potável das Fontes de Belém). Foi então anunciado que as águas demorariam semanas para baixar. Notando a fragmentação e imprecisão das informações oficiais, a instabilidade de serviços essenciais, as falhas em mapas comerciais em lidar com a situação, e preocupado que poderia precisar saber dos detalhes no caso de uma emergência, conversei com a comunidade local pra ver se alguém iria se opor e então decidi começar a mapear a nova realidade num lugar só: no OSM. Com o tempo, a Lagoa dos Patos também subiu, inundando as cidades ao seu redor. As últimas ruas afetadas em áreas urbanas só secaram no final de julho, e várias cidades da serra ainda tentam se recuperar da destruição, com pontes destruídas, pontes provisórias canceladas, balsas inoperantes, estradas obstruídas por deslizamentos, entre outras situações.
No início desse caos, o roteamento dos mapas comerciais frequentemente me guiava por vias alagadas intransitáveis, assim como fizeram nas enchentes no Sudeste em 2020. Para mim, isso aconteceu muitas vezes perto do bairro Praia de Belas, onde houve um misto de vias alagadas e vias transitáveis intercaladas.
Em Porto Alegre, esses mapas inicialmente bloquearam o roteapento só em vias arteriais, gerando rotas que serpenteavam desviando por vias locais ainda alagadas. Pode ter ocorrido porque a EPTC divulgou um mapa de bloqueios com uma abordagem mais didática (marcando só cruzamentos em vias arteriais), que os mapas comerciais interpretaram literalmente. Algo similar ocorreu mais tarde com o mapa oficial dos bloqueios nas estradas. Com o tempo, os mapas comerciais também bloquearam vias locais na área afetada, mas muitos bloqueios foram removidos cedo demais por políticas automáticas desses sistemas, mesmo em vias arteriais, enviando usuários como eu por ruas ainda alagadas. Depois de uns dias, um desses sistemas começou a exibir um alerta de inundação em qualquer rota que passasse por um município atingido, mesmo que a rota estivesse a dezenas de quilômetros da área afetada. Isso evidenciou que esses sistemas confiam em dados imprecisos e não têm acesso a imagens aéreas atualizadas nem realizam levantamentos regulares nos locais afetados. Enquanto muitos bloqueios eram liberados prematuramente no Waze, no Google Maps as pontes e desvios provisórios permanecem sem mapeamento depois de meses. Esses mapas sabidamente têm parcerias com prefeituras e governos e por isso sáo concorrência desleal pro OSM, já que os dados fornecidos a eles não são publicados de forma agregada em outros canais.
O mapeamento teve duas fases: uma de mapeamento de bloqueios (inserção de access=no, ou no caso de queda de pontes, substituição de highway por destroyed:highway) logo após o início da enchente, e outra, mais recente e lenta, de mapeamento de desbloqueios (remoção de access=no). Na primeira fase, mapeei estradas bloqueadas usando imagens de baixa definição, com as quais tive que ser conservador, sem alterar vias onde não tinha certeza se estiveram alagadas. Depois, usei algumas imagens de alta resolução, principalmente na área metropolitana. O mapeamento foi diferente no interior, onde dependi de fontes alternativas confiáveis, e na capital, onde é relativamente fácil para mim verificar a situação diretamente, adicionando pequenos desvios às minhas atividades cotidianas. Tal como fiz nas enchentes de 2023, adicionei também a etiqueta damage:event:wikidata=Q125772990 para que fosse possível identificar as vias que precisam de revisão. Sem isso, seria impossível diferenciar as vias afetadas por esse evento e as vias que já eram bloqueadas antes por outras razões. Alguns mapeadores começaram a mapear esses bloqueios sem adicionar essa etiqueta, e quando percebi, acrescentei para não cair no esquecimento e manter tão organizado quanto possível. Em futuras crises de menor proporção que não tenham um identificador wikidata associado, talvez se poderia usar a etiqueta access:temporary=yes para ajudar a revisar, mas é pouco usada e não tem nem artigo no wiki.
Na capital, em maio e no início de junho, fiz três levantamentos em campo usando o OruxMaps para me orientar (seguindo um plano de rota feito antes no JOSM) e o bom e velho OsmTracker para esboçar os novos limites das inundações em Porto Alegre. Como já tinha feito várias vezes antes, quando comecei, inventei na hora um código textual simples, basicamente acrônimos das iniciais de frases como “ao norte, alagado, ao leste e ao sul, livre” (NA,LSL), e basicamente dirigi pelas ruas seguindo o contorno anterior procurando os novos limites. O percurso começando pelo Sarandi, seguindo até o bairro São João, de lá até o Centro e terminando no Menino Deus levou em média 3 a 4 horas. Ao abrir esses tracklogs anotados no JOSM, pude deduzir facilmente os novos contornos da inundação para atualizar o mapa corretamente. Quando as principais estradas foram reabertas e com novos relatos de que a água estava baixando, realizei levantamentos adicionais em Canoas, São Leopoldo e Novo Hamburgo em junho e julho. Em São Leopoldo, um mapeador estava verificando e desbloqueando uma área relativamente grande, mas parou na metade do processo e não mapeou mais desde então. Em Lajeado, outro mapeador fez alguns desbloqueios, achei que era um mapeador local, mas as edições seguintes hoje me deixam em dúvida. Nesses levantamentos, me envolvi em dois pequenos acidentes de carro: uma colisão traseira em Ipanema (a pessoa deu ré sem me ver), e outro do lado do aeroporto quando a roda dianteira esquerda do meu carro caiu num buraco profundo sem sinalização feito para apoiar grandes máquinas de drenagem. As cenas durante esses levantamentos eram desoladoras. Toda a margem do rio do Centro Histórico até o bairro São Geraldo esteve por semanas sem energia e silenciosa à noite, com um cheiro de material orgânico apodrecido que entrava no carro mesmo com o ar condicionado desligado e as janelas fechadas. Ocasionalmente, eu via pessoas com lanternas andando ou navegando pelas ruas alagadas no escuro. Mais tarde, as ruas recém-secas tinham lama e poeira fedida e entulho doméstico dos esforços de limpeza das casas.
No interior, tive que recorrer a outros métodos. Relatos orais sempre foram muito imprecisos, então, usei-os só para priorizar a pesquisa por mais informações. Cruzei todas as informações que hangariei com fotos e vídeos de diferentes mídias locais e redes sociais, feitos tanto no chão quanto do ar com drones, por moradores e diferentes tipos de interessados. Como a maioria dessas informações não incluía uma descrição exata do local a que se referiam, esse cruzamento foi essencialmente um trabalho de detetive: procurar nos registros fotográficos indícios (ex. placas, edificações, elementos da paisagem, características das vias como número e pintura das faixas, rachaduras no asfalto, etc.) que permitissem a geolocalização precisa. É controverso usar essas fontes para mapear, principalmente por causa da qualidade da informação, por isso redobrei a verificação para ter mais certeza do que estava fazendo, já que não achei outras fontes. Uma fonte específica filmou de carro várias áreas afetadas e tinha o hábito de mencionar o nome da rua em que estava a cada momento, o que ajudou bastante na geolocalização das filmagens (mas é preciso cuidar que essa fonte estava usando outro mapa, e por vezes o nome das ruas está incorreto qualquer que seja o mapa digital). Pouco depois surgiu o mapa oficial dos bloqueios nas estradas, mas tinha um misto de informações precisas e imprecisas (geralmente até 1km de erro, teve um caso a 30km do local correto) ou às vezes desatualizadas, e não incluía ruas e estradas municipais, nem mesmo as mais importantes. Inicialmente, tratei esse dado como os relatos orais. Também recebi relatos de outros mapeadores pelo Telegram; alguns foram relatos orais onde a pessoa transmitiu uma informação que ouviu de outros, outros foram comentários apontando para fontes de informações locais sem muita visibilidade que eu ainda não tinha achado. Deixei pro final casos mais difíceis pros quais só havia textos de prefeituras publicados em jornais, torcendo que mapeadores locais identificariam as localizações exatas antes de mim, mas isso raramente ocorreu. Um desses casos tardios foi o das estradas municipais de Caxias do Sul, a segunda maior cidade do estado, onde os mapas comerciais estavam recomendando rotas por estradas municipais interditadas (não por enchentes mas por deslizamentos causados pelas mesmas chuvas que causaram as enchentes): além de a prefeitura reportar as vias bloqueadas sem dizer exatamente o trecho (e não foi possível resolver isso infelizmente), a maioria das vias rurais reportadas pela prefeitura não está identificada em mapas comerciais e também não estava no OSM, a busca no mapa oficial da prefeitura estava quebrada (nem olhei se já consertaram), e clicar em cada uma das estradas no mapa oficial levou muito tempo porque o aplicativo web é um tanto arcaico e pesado. Passei 2 dias procurando 5 estradas, extremamente frustrante.
No auge da inundação, cerca de 6.500 vias foram marcadas como bloqueadas no Rio Grande do Sul, principalmente vias locais na área metropolitana densamente povoada. Essa estatística pode contar uma via várias vezes se ela estiver particionada, então é uma estatística superestimada. É possível recuperar essas vias facilmente com diferentes consultas por data no Overpass, que também podem ser feitas de forma mais conveniente pelo JOSM:
1 2 3 4 5 6 7
[out:json][timeout:90][bbox:{{bbox}}][date:"2024-05-20T00:00:00Z"]; ( way["damage:event:wikidata"=Q125772990][highway][access=no]; way["damage:event:wikidata"=Q125772990]["destroyed:highway"]; way["damage:event:wikidata"=Q125772990][highway=construction]; ); out geom;
O OSM é a única base de dados que eu conheço que tem essa informação minimamente consolidada em um só lugar. É provável que as autoridades também tenham algo parecido, mas nunca vi publicarem.
Quando a maioria quase absoluta dos bloqueios foi mapeada, os sistemas de roteamento no site do OSM (Valhalla, OSRM e GraphHopper) começaram a sugerir rotas coerentes quase sempre. Os desvios propostos pelo Valhalla quase sempre correspondiam aos sugeridos pelas autoridades (que também demoraram pra fazer tais sugestões). O OSRM é mais aventureiro e sugeriu mais desvios por estradas locais não-pavimentadas para reduzir a distância total, o que normalmente não é tão ruim depois de alguns dias de sol. Sem os bloqueios nas estradas locais, esse sistema, que é mais parecido com navegadores tradicionais offline, muito usados em campo onde não há sinal de telefonia celular, teria sugerido muitas rotas por vias alagadas que depois estiveram cobertas de lama por semanas. Se na capital os sistemas comerciais estavam falhando muito em contornar as vias submersas, no interior então muitas dessas estradas locais sequer chegaram a ser bloqueadas, provavelmente levando muita gente por rotas malucas enquanto o caos se desenrolava. Muitos devem ter ficado achando que não sabiam usar o seu GPS supermoderno. O OSM não necessariamente teria ajudado muito essas pessoas no início da crise porque sistemas como o Valhalla, o OSRM e o OsmAnd levam algum tempo para refletirem os mapeamentos (nesse momento o Valhalla é atualizado a cada ~2 dias, o OSRM a cada semana, e o OsmAnd a cada mês), mas certamente quando terminei de mapear os bloqueios eu estava confiando mais na qualidade das rotas dadas a partir do OSM do que nas do Waze e do Google Maps. Mesmo depois na fase de desbloqueios atrasados, eu sabia que de vez em quando me recomendariam uma volta um pouco maior mas não me mandariam por caminhos impedidos, perigosos ou ainda em situação de crise.
A fase de desbloqueios e reavaliação das novas condições foi similar, com informações mais escassas e geralmente atrasadas. Fontes como mídia e redes sociais, que antes reportavam muito os bloqueios, se mostraram menos propensas a relatar a normalização. Vídeos de drones como este ofereceram visões amplas que permitiram mapear tanto bloqueios quanto desbloqueios rapidamente, mas quase nunca permitiram avaliar se as vias estavam em boas condições como permitiam vídeos feitos do chão como este. Por essa época, o time humanitário do OSM (HOT) começou a mapear edificações nas áreas afetadas. Por sorte, muitas das minhas pesquisas me permitiram acrescentar ao trabalho deles a informação de quais edificações foram destruídas, visíveis nas imagens que ia encontrando. Pouco depois, como eu já esperava, a postura da comunidade passou a priorizar o desbloqueio das vias rapidamente; um mapeador chegou a propor desbloquear tudo sem verificar nada, correndo o risco de sugerir rotas por vias bloqueadas ou precárias. Então, passei a ter que confiar mais no mapa oficial dos bloqueios nas estradas para tentar acelerar um pouco esse processo, mas ainda hoje ele se mostra desafiador, por exemplo: na ponte no km 22 da ERS-441 em Vista Alegre do Prata, ele está indicando trânsito liberado mas sem permissão para veículos leves, caminhões, de emergência e de ajuda humanitária, o que é uma contradição; a mídia local reportou duas semanas atrás que foi inaugurada uma ponte provisória a 200 metros da ponte que caiu nesse local, sem restrições ao tráfego de veículos. Além disso, o mapa oficial marca a posição da antiga ponte sobreposta ao Google Maps, que segue desatualizado, sem informações sobre a geometria do desvio e da nova ponte, inferidos (provavelmente com alguma imprecisão) a partir das fotos da mídia local.
Em agosto de 2024, as autoridades continuam trabalhando na recuperação e reparo dos danos, com o fim de algumas obras importantes previstas só para o primeiro semestre do próximo ano. 988 vias ainda estão mapeadas como bloqueadas, quase todas vias locais em áreas rurais remotas onde novas imagens e relatos locais são escassos. Prevendo essa escassez de informação, ainda em maio eu já tinha me preparado para focar o esforço de verificação em vias de alta classe (secundárias, primárias, troncais) (isso só faz sentido no RS porque as rotas intermunicipais e as vias urbanas das principais cidades estão bem classificadas, refletindo sua importância real). Foram confirmados recentemente o único bloqueio mapeado em troncais, os 4 em primárias e 4 dos 6 em secundárias (e os outros 2 não afetam quase nenhum deslocamento). E com raríssimas exceções, as outras vias terciárias e locais bloqueadas têm pouco ou nenhum tráfego registrado no Strava. Com a falta de mapeadores locais realizando levantamentos em campo, talvez seria razoável, eventualmente, onde restarem só vias locais bloqueadas, e exauridas as fontes alternativas de informação, propor o desbloqueio dessas vias restantes mesmo sem verificação, assumindo que o roteamento tende a evitá-las, e com isso limitar o número de casos de roteamento por caminhos ruins ou inseguros.
Adendo: em 17/08/2024, foi publicada no OpenAerialMap uma imagem de satélite atualizada do INPE na região de Lajeado, Sinimbu e Candelária. Desbloqueei algumas vias que parecem em condições mínimas, mas muitas das vias bloqueadas no mapa ainda parecem cobertas de lama, detritos ou sob deslizamentos em 18/08/2024.
Adendo em 14/10/2024: após revisar imagens recentes do Sentinel-2 Level 2A (conjunto Sentinel-2 L2A no Copernicus Browser), o número de estradas bloqueadas caiu para menos de 200. As imagens são de baixa resolução, então nem sempre é possível ter certeza de que estão trafegáveis, e raramente é possível saber as condições de trafegabilidade após a inundação, mas é a melhor informação disponível.
Numa segunda revisão, notei que algumas estradas bloqueadas estiveram secas e alagadas intermitentemente nos últimos dias. Ao olhar o histórico, percebi que, de 20/10/2016 a 13/10/2024, as principais vias locais no entorno do entroncamento da BR-290 com a avenida Assis Brasil alagaram 8 vezes (em 2024-05-06, 2023-11-20, 2023-09-11, 2023-07-21, 2023-06-18, 2020-07-13, 2018-09-07 e 2017-10-22), outras vias locais menos importantes (acessos internos nas lavouras) alagaram 11 vezes (também em 2024-10-05, 2020-09-21 e 2019-11-06), e as áreas de cultivo, maix baixas, 15 vezes (também em 2021-09-16, 2021-07-03, 2019-08-03 e 2018-07-19). Em alguns casos é possível notar que o alagamento durou vários dias (2024-05-06 a 2024-07-02, 2023-09-11 a 2023-09-29, 2018-09-05 a 2018-09-07, 2017-10-15 a 2017-10-22). Com isso, sabe-se que as vias principais nessa área estiveram alagadas ao menos 31 dias no período de 2769 dias anterior à enchente desde 20/10/2016, ou seja, ao menos 1,12% do tempo. Como o wiki sugere que flood_prone=yes pode ser usada em vias que ficam alagadas mais do que 0,1% do tempo, apliquei essa etiqueta nessas vias e comecei a revisar as imagens históricas das que estiveram algadas durante esse evento.
Em retrospecto, é provável que essas imagens do Sentinel-2 teriam ajudado no mapeamento. Por exemplo, foi difícil obter informações precisas em Pelotas e em Rio Grande de outras fontes na época, mas é possível ver a mancha da inundação sobre as ruas do Laranjal em Pelotas na imagem de 2024-05-26 e do centro em Rio Grande na imagem de 2024-05-31. Embora não tenha sido noticiado na mídia, essas imagens também foram usadas pela UFRGS para elaborar um polígono da mancha de inundação, parte de um banco de dados das cheias.